quinta-feira, 7 de julho de 2016

Bar Riviera (1949-2006) Texto de Valdir Sanches para O Estado de S. Paulo





A casa na Rua da Consolação onde estudantes e artistas falavam mal da ditadura fechou depois de 57 anos - texto originalmente publicado no Estado de São Paulo, sábado, 26 de abril de 2006.


Por Valdir Sanches

Chico Buarque de Hollanda desceu de um táxi, com uns amigos, na Rua da Consolação, esquina com Paulista. O que ia fazer num lugar desses, em plena madrugada? Ora, estava chegando ao mais famoso reduto da esquerda festiva da cidade nos anos da ditadura.

Um bar, claro. Naqueles anos, fins dos 1960 e década de 1970, o Riviera viveu seu período de grande efervescência revolucionária, festiva e etílica. A abertura política do País, a partir de 1985, fez-lhe mal. Aos poucos, a clientela se foi. Em fevereiro, fechou as portas, depois de 57 anos de história na noite paulistana.

Quem viu Chico Buarque descer do táxi foi o hoje cineasta e escritor Jorge Bouquet. “Eles vinham de uma serenata que tinham feito para uma garota. O Chico ia apresentando o motorista de táxi para as pessoas: ‘Este é fulano, meu motorista particular’.”

 A noite era uma criança, como se dizia na época. O bar ficava aberto até o último freguês – e ele raramente saía antes do amanhecer. Grande parte da clientela batia ponto toda noite. “Se você quisesse me achar, era lá”, diz a jornalista Dina Amendola. Outros, eram assíduos, mas não tanto. José Dirceu, então líder estudantil, Fernando Henrique Cardoso, Vinicius de Moraes, Toquinho, Chico.

 Dina não militou contra o regime, mas esteve na torcida (chegou a ser presa, por causa de um bilhete). “Quando algum de nós sumia, falávamos: ‘Fulano sumiu do mapa’. E o mapa era o Riviera.” No bar, diz, chegava a notícia do sumiço – indício certo de prisão.

Mas a freguesia não vivia só de resistência. “Nós, garotas, queríamos conhecer e namorar um moço bem legal, de preferência do movimento revolucionário. Se fosse um líder estudantil, que pertencesse à diretoria da UNE, aí era o máximo.”

O máximo, também, era o que acontecia entre as paredes do bar (uma delas curva, com tijolos de vidro – a marca do lugar). Certa noite, o Pernambuco, esse era o apelido, entrou no Riviera e disse que ia fazer strike. Novidade nos Estados Unidos: grupos de pessoas saíam correndo nuas pelas ruas.



Os amigos achavam que ia pegar mal, mas Pernambuco insistia. Até que em certa hora encostou na coluna do bar, segundo alguns. Ou ficou atrás da última mesa dos fundos, segundo outros. O fato é que tirou a roupa. Nu, abriu caminho entre as mesas, saiu para a rua e… entrou em um carro (um Fusca), que o esperava.O publicitário Albertinho Lira, um dos que contam o episódio, diz que a atitude foi conseqüência “da revolução sexual da época”. Sim, eram tempos de liberação sexual (e não havia aids).

 Albertinho (que certa noite subiu numa mesa para discursar) fala do mezanino do bar, lugar menos agitado. “A gente ia lá com uma garota, para uma beijoquinha, uma aproximação corporal.” Mas nada parecido com “o que essa molecada faz hoje, de ficar se beijando na rua”. Todos os amigos de bar tinham “a mesma ideologia”. Consistia em “combater a ditadura e ter acesso a festas”. Albertinho militou numa organização clandestina, a Polop, mas desistiu. “Por um motivo: eu tinha medo.”

 Quanto a festas, não faltavam. “Aquela era a década das festas, todo mundo fazia festas e todos procuravam por uma”, diz a jornalista Dina. A notícia corria pelas mesas do bar: festa na casa de fulano. Ou alguém era convidado para uma festa e chegava com a turma do Riviera. “Fui numa festa na Vila Madalena e a Elis Regina estava lá”, diz Albertinho Lira.

Para encontrar Toquinho não era preciso sair do bar. “O Riviera era um pouco a casa descontraída de estudantes, intelectuais e artistas”, diz o cantor e compositor. Na época, estudava Contabilidade no Mackenzie. Ia sempre ao bar com um colega, estudante de Arquitetura na USP, apelidado de Chico.

Davam uma canja para o pessoal? “Eu e o Chico estávamos sempre com o violão debaixo do braço, às vezes tocávamos.” Toquinho também freqüentava o mezanino. “Pagava uma pizza para a namorada e dava uns beijinhos.”

O prato mais requisitado do bar era, na verdade, um sanduíche. O Royal, algo como um bauru em pão de forma, envolvido por uma omelete. Um dos que não falhavam nas noites do bar, o jornalista Chico Lins, acha que as peculiaridades da culinária eram uma das atrações do lugar. “Todo mundo era durango e podia ficar no lanche, que era mais barato.”

Mas também: “Eu ia lá porque encontrava meus amigos. Vivíamos num clima sufocante, e a prudência indicava que se procurassem os seus.” O que não garantia muito. Porque esta ou aquela pessoa, tão bem instalada em uma mesa, podia ser um policial infiltrado. Jorge Bouquet, o cineasta, certa noite desconfiou de um cidadão “que chegou e entrou na conversa”.

 ”Disse que trabalhava na Gazeta Mercantil, mas achei que era um tira infiltrado.” No dia seguinte, Jorge ligou para um amigo do jornal. O suspeito realmente trabalhava lá. “Depois, acabou ficando meu amigo”, diz Jorge.

Ao lado do Riviera havia outro bar agitado, o Ponto 4. A clientela ia e vinha de um para outro. Às vezes a polícia baixava e pegava o pessoal em trânsito. O próprio delegado Sérgio Paranhos Fleury, uma espécie de mastodonte da polícia política, o Dops, é citado como tendo, algumas vezes, comandado pessoalmente a ação. “Eles levavam todo mundo, para ver se pegavam alguém da luta armada”, diz um dos que falam em Fleury, a jornalista Dina.

O cartunista Chico Caruso retratou a situação em um desenho. Mostra os camburões cheios e o dono do bar se lamentando: “Lá se vai minha freguesia.” Os irmãos Chico e Paulo, gêmeos, nasceram no mesmo ano que o Riviera, 1949. Estudavam na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP. “O bar era a extensão da faculdade”, diz Paulo. “O Chico tinha uma postura política mais consistente, mas eu era mais da turma do desbunde.”

O Riviera era destino natural do pessoal que saía do Cine Belas Artes, do outro lado da Rua da Consolação. “A gente saía do cinema e ia direto para o Riviera, para ficar comentando o filme”, diz Dina, a jornalista. Albertinho Lira lembra-se de que pulavam uma divisória do canteiro central da Consolação, para chegar mais depressa ao bar. O cinema, que também enfrentou a decadência, mas teve melhor sorte – restaurado, está em pleno funcionamento – foi fundado em 1952, três anos depois do Riviera.

Nos bons tempos, os fregueses mais próximos penduravam a conta. “Se atrasava, a mãe do Renato (o dono) ligava para a pessoa”, diz Carlos Salum, redator de uma agência de Marketing. “Ela dizia: ‘Faz tempo que você não aparece por aqui…’ Era tão atenciosa, que o pessoal ia lá e pagava.” O bar aberto pelo comerciante Renato Maniscalco teve uma clientela fina até 1964. Com os militares no poder, o público foi mudando, vieram os estudantes, artistas. Em 1999, decadente, fechou. Mas logo reabriu. Desta vez, foi despejado e não houve jeito. O único que restou foi o ponto de táxi Riviera, ao lado.












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