Quando Charles Miller
trouxe da Inglaterra a primeira bola de futebol, jamais imaginaria que a porta
de seu futuro escritório – a Miller, Goddard & Cia. – se transformasse,
muitas décadas depois, na entrada de um simpático boteco. Um dos mais bonitos
da cidade.
“Garimpando velharias,
encontrei a bela porta de madeira art decô; estava roída por cupins, mas o
vidro com o nome da firma intacto”, conta Babi, antiquária e designer de
móveis. Sem saber ainda a que “Miller” a porta pertencia, restaurou-a devido à
raridade do vidro, sobrevivente de uma época glamurosa sem um único arranhão. E
dele emprestou o nome, inaugurando seu bar em 1992.
“Apaixonado por futebol,
meu marido desconfiava que o móvel fosse mesmo de Charles Miller”. A solução do
mistério veio logo, quando Carlos Rudge
Miller Jr. – “Charles Miller” para os amigos – pisou no pub pela primeira
vez.
“A porta era da firma do
meu avô, em sociedade com Edward Goddard”, revela. Representante da Mala Real
Inglesa, dedicada ao comércio exterior, tinha no café a mercadoria principal e
a Praça da República como endereço.
O bar, concebido e
desenhado por Babi, segue o estilo do começo do século XX: simpática varanda
(teto retrátil) dando para a avenida, piso de azulejo hidráulico, mesinhas de
madeira com lindas pinturas e cadeiras de cowboy. Filé amanteigado (R$ 29,60),
cogumelos variados ao vapor (R$ 32,30), camembert c/ alho grelhado (34,00), são
porções deliciosas para duas pessoas.
O que mais ressalta na
elegante decoração são as vitrines que forram as paredes, especialmente as de
vidro abaulado, estreita passagem para uma sala privée. Num canto do salão,
palco de música ao vivo – rock anos 60, 70, 80, blues, jazz (couvert artístico
de R$ 8,00 a R$ 20,00, dependendo do dia) – a moçada bomba. Um grande e bem
humorado relógio sobre o bar centraliza prateleiras com 60 rótulos de uísque e
20 de cachaça. Feito sob encomenda, o mostrador repete o número cinco: “É a
hora do chá inglês e do antigo happy hour”, brinca, afirmando que um happy hour
pode acontecer a qualquer momento: “basta amigos se reunirem para jogar
conversa fora, saboreando um drinque!”. Uísque 8 anos (R$ 12,50), 12 anos (R$
17,00); chopp (R$ 3,80).
“Meu avô era um amante do
futebol e jamais imaginou o esporte como comércio; ele se decepcionaria muito
com a cartolagem de hoje”, conta Charles bebericando o seu. Filho de John –
engenheiro escocês que veio para o Brasil trabalhar na construção da estrada de
ferro Santos – Jundiaí (idealizada pelo Barão de Mauá), Charles William Miller
(1874 -1953) nasceu em São Paulo, num sítio do Brás. Com 10 anos de idade foi
estudar na Inglaterra, voltando 10 anos depois: 1894 é considerado o ano da
introdução do futebol no País. “Ele trouxe duas bolas – para o caso de uma
furar – e foi o primeiro brasileiro a jogar na Europa”, diverte-se o rapaz,
equilibrando uma na testa. DNA de quem entende o gingado.
Época de futebol amador, a
Liga Inglesa ainda estava se formando. Relativamente conhecido no além-mar,
Miller, baixinho e troncudo – apelidado “Nipper”, garoto rápido, habilidoso – o
drible “chaleira” (puxar a bola com o pé e chutar com o calcanhar por trás da
outra perna) vem de seu nome. Chegou a jogar no famoso Corinthian Football
Club, de onde vem o nome do maior time paulistano. “Meu avô procurou introduzir
o jogo entre seus amigos e colegas de trabalho, ensinando regras e dribles”,
diz Charles, santista roxo.
Delimitaram o primeiro campo na Várzea do Carmo
(região da Estação da Luz), e tinham que espantar as vacas pastando, durante as
partidas. Centro-avante, Miller driblou até 1906, passando para árbitro até
1914. Espantou-se com a velocidade com que o esporte bretão se alastrou por
aqui: como rastilho de pólvora, no final do século XIX já havia uma torcida
considerável, com mais de três mil espectadores. Homens de fraque e mulheres de
chapéu – como no turfe – assistiam às “peladas” entre o time do SPAC (São Paulo
Atlhetic Club – criado por ele) e o do Mackenzie, a primeira agremiação fundada
por brasileiros, em 1896. Creditou à mistura de raças o talento do futebol
nacional.
Casado
com com Antonieta Rudge – pianista virtuose, casada em segundas núpcias com o
escritor modernista Menotti del Picchia (autor de Juca Mulato) – teve dois
filhos: Carlito (pai de Charles) e Helena. Assim, como domingo é o Dia dos
Pais, brindemos à memória do grande Charles Miller, pai do futebol brasileiro:
olé!
Miller, Goddard & Cia.
Avenida Morumbi 8163 Brooklin
Tels: (11) 5535-5007 / 5096-2707
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