quinta-feira, 14 de julho de 2016

Miller Goddard & Cia Ltda


Quando Charles Miller trouxe da Inglaterra a primeira bola de futebol, jamais imaginaria que a porta de seu futuro escritório – a Miller, Goddard & Cia. – se transformasse, muitas décadas depois, na entrada de um simpático boteco. Um dos mais bonitos da cidade.

“Garimpando velharias, encontrei a bela porta de madeira art decô; estava roída por cupins, mas o vidro com o nome da firma intacto”, conta Babi, antiquária e designer de móveis. Sem saber ainda a que “Miller” a porta pertencia, restaurou-a devido à raridade do vidro, sobrevivente de uma época glamurosa sem um único arranhão. E dele emprestou o nome, inaugurando seu bar em 1992.

“Apaixonado por futebol, meu marido desconfiava que o móvel fosse mesmo de Charles Miller”. A solução do mistério veio logo,  quando Carlos Rudge Miller Jr. – “Charles Miller” para os amigos – pisou no pub pela primeira vez.   

“A porta era da firma do meu avô, em sociedade com Edward Goddard”, revela. Representante da Mala Real Inglesa, dedicada ao comércio exterior, tinha no café a mercadoria principal e a Praça da República como endereço.


O bar, concebido e desenhado por Babi, segue o estilo do começo do século XX: simpática varanda (teto retrátil) dando para a avenida, piso de azulejo hidráulico, mesinhas de madeira com lindas pinturas e cadeiras de cowboy. Filé amanteigado (R$ 29,60), cogumelos variados ao vapor (R$ 32,30), camembert c/ alho grelhado (34,00), são porções deliciosas para duas pessoas.

O que mais ressalta na elegante decoração são as vitrines que forram as paredes, especialmente as de vidro abaulado, estreita passagem para uma sala privée. Num canto do salão, palco de música ao vivo – rock anos 60, 70, 80, blues, jazz (couvert artístico de R$ 8,00 a R$ 20,00, dependendo do dia) – a moçada bomba. Um grande e bem humorado relógio sobre o bar centraliza prateleiras com 60 rótulos de uísque e 20 de cachaça. Feito sob encomenda, o mostrador repete o número cinco: “É a hora do chá inglês e do antigo happy hour”, brinca, afirmando que um happy hour pode acontecer a qualquer momento: “basta amigos se reunirem para jogar conversa fora, saboreando um drinque!”. Uísque 8 anos (R$ 12,50), 12 anos (R$ 17,00); chopp (R$ 3,80).

“Meu avô era um amante do futebol e jamais imaginou o esporte como comércio; ele se decepcionaria muito com a cartolagem de hoje”, conta Charles bebericando o seu. Filho de John – engenheiro escocês que veio para o Brasil trabalhar na construção da estrada de ferro Santos – Jundiaí (idealizada pelo Barão de Mauá), Charles William Miller (1874 -1953) nasceu em São Paulo, num sítio do Brás. Com 10 anos de idade foi estudar na Inglaterra, voltando 10 anos depois: 1894 é considerado o ano da introdução do futebol no País. “Ele trouxe duas bolas – para o caso de uma furar – e foi o primeiro brasileiro a jogar na Europa”, diverte-se o rapaz, equilibrando uma na testa. DNA de quem entende o gingado.

Charles Miller Neto
Época de futebol amador, a Liga Inglesa ainda estava se formando. Relativamente conhecido no além-mar, Miller, baixinho e troncudo – apelidado “Nipper”, garoto rápido, habilidoso – o drible “chaleira” (puxar a bola com o pé e chutar com o calcanhar por trás da outra perna) vem de seu nome. Chegou a jogar no famoso Corinthian Football Club, de onde vem o nome do maior time paulistano. “Meu avô procurou introduzir o jogo entre seus amigos e colegas de trabalho, ensinando regras e dribles”, diz Charles, santista roxo. 

Delimitaram o primeiro campo na Várzea do Carmo (região da Estação da Luz), e tinham que espantar as vacas pastando, durante as partidas. Centro-avante, Miller driblou até 1906, passando para árbitro até 1914. Espantou-se com a velocidade com que o esporte bretão se alastrou por aqui: como rastilho de pólvora, no final do século XIX já havia uma torcida considerável, com mais de três mil espectadores. Homens de fraque e mulheres de chapéu – como no turfe – assistiam às “peladas” entre o time do SPAC (São Paulo Atlhetic Club – criado por ele) e o do Mackenzie, a primeira agremiação fundada por brasileiros, em 1896. Creditou à mistura de raças o talento do futebol nacional.

Casado com com Antonieta Rudge – pianista virtuose, casada em segundas núpcias com o escritor modernista Menotti del Picchia (autor de Juca Mulato) – teve dois filhos: Carlito (pai de Charles) e Helena. Assim, como domingo é o Dia dos Pais, brindemos à memória do grande Charles Miller, pai do futebol brasileiro: olé! 

 

Miller, Goddard & Cia.

Avenida Morumbi 8163 Brooklin

Tels: (11) 5535-5007 / 5096-2707

 

Armando C. Serra Negra


 

 

 

 

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